“Mensalão”: O Poder Judiciário como peça fundamental para se construir
uma nova oposição no país
Marcus Vinícus Cordeiro
Nos dois últimos meses o julgamento da Ação Penal 470 vem suscitando debates em
vários campos da vida nacional, extravasando o meio jurídico, em que comumente
tais assuntos ficam restritos. Advogados, juristas, analistas políticos e os
congressistas estão debruçados sobre o tema. Especialmente a mídia, nas suas
várias formas, vem tratando dos múltiplos enfoques que o caso permite,
cada qual pretendendo dele tirar o melhor proveito, em consonância com os seus
propósitos, conhecidos ou não.
Aparentemente, o episódio situa a democracia brasileira em patamar deveras
elevado, mostrando a quem interessar possa a liberdade e a soberania de nossas
instituições, para as quais não há temas proibidos, nem pessoas acima de
qualquer suspeita, fazendo valer a quimera de que aqui os poderosos também vão
para a cadeia. Seria o protótipo do Brasil pelo qual tantos lutaram, com perdas
de toda ordem, inclusive da própria vida. Seria….
Todavia, a análise isenta do caso não permite essa conclusão idílica, da qual
alguns pretendem se servir. O julgamento do apelidado “mensalão” – assim
alcunhado pelo denunciante e denunciado Roberto Jefferson – está se
caracterizando como o coroamento da chamada “judiciliação da política”. Este
movimento, apoiado pela grande mídia, busca agigantar o Poder Judiciário, em
detrimento dos demais poderes da República, submetendo-os ao seu crivo
exemplar. Nesse processo, a estratégia consiste na exposição do Executivo e do
Legislativo à suspeição permanente, tratando-os como fontes inesgotáveis de
corrupção, privilégios, nepotismo, ineficiências e tantas outras máculas,
diuturnamente denunciadas e industriadas para o fim pretendido. E, assim,
enfraquecidos pela desmoralização, restaria ao Poder Judiciário, com os seus
homens de preto e ares severos – arquétipos dos vingadores das ficções -,
restabelecer a moralidade, protegendo a sociedade dos “bandidos” encastelados
nos altos cargos da República. E esse
script a Suprema Corte está
executando com perfeição.
Ocorre que dos personagens envolvidos, instituições públicas e privadas, assim
como os indivíduos, cada qual está representando os interesses imediatos e
históricos que lhes compete. E nesse
dramatis personae, o Supremo
Tribunal vem correspondendo ao que cabe ser feito por uma das peças mais
importantes da superestrutura de uma sociedade: qual seja, cuidar dos
interesses subjacentes de classe, ora ameaçados por um projeto que vem se
delineando desde a chegada do PT ao poder, em 2003.
De fato, desde aquele momento, o país experimenta uma mudança quantitativa e
qualitativa capaz de revirar toda a estrutura sedimentada ao longo de séculos,
em termos econômicos, sociais e políticos. Apenas para citar alguns
inquestionáveis exemplos, por força de uma política econômica centrada no
binômio crescimento/distribuição de renda, o país vem se desenvolvendo de forma
autônoma em face do capital internacional, promovendo uma justiça social jamais
aplicada anteriormente pelas elites dominantes. É preciso lembrar que cerca de
30 milhões de pessoas ascenderam socialmente no curto espaço de tempo.
Nesse contexto, a geração de empregos – cerca de 14 milhões – e a adoção de
políticas sociais de inclusão – bolsa-família, principalmente – alcançaram os
pobres e humildes do país, transformando-os em agentes das mudanças que
permitiram o enfretamento das crises internacionais, o pagamento da dívida
externa e demais medidas que posicionaram o Brasil no caminho de se tornar,
brevemente, a 5ª. maior economia do mundo.
No cenário em que grandes massas de excluídos passam a se movimentar no campo
social, amparadas por uma economia favorável e que assegura suas necessidades
básicas, resta evidente que o passo seguinte levará esse contingente a uma
participação política mais ativa e consciente. E agora não mais em prol de bens
de vida antes sonegados pelas políticas elitistas excludentes.
Esse contingente de pessoas, agora adentrando o mercado de consumo, que sempre
lhes foi restrito, estará apto a reivindicar mais, aprofundando as conquistas,
elevando suas condições de vida material, participando de forma mais ampla da
geração da riqueza, advinda da sua inserção no processo produtivo de um país em
crescimento. E aqui se vislumbra grandes riscos para os privilégios acumulados
ao longo dos séculos, com perdas para as castas que destes sempre se
beneficiaram. Notadamente, porque o Estado estará a serviço de outras
reivindicações, não mais as suas.
Pois bem. Na iminência de circunstâncias tão transformadoras para as elites
brasileiras, a oposição firme seria o caminho democrático para barrar o projeto
em marcha. No campo político, contudo, as tentativas nesse sentido vêm
resultando insuficienes desde o primeiro mandato do Presidente Lula.
Amealhando índices de aprovação e popularidade jamais experimentados por
qualquer outro governante, Lula não só se reelegeu como fez a sua sucessora. E
Dilma que vem sendo, igualmente, a partir da manutenção da mesma orientação
econômica/social, altamente avaliada.
Nessa situação desoladora para as elites, a estratégia do descrédito na
política surge como a bóia dos afogados, para – ao menos – criar em parcelas da
população (a classe média conservadora, marcadamente) o sentimento de rejeição
que possa ser aproveitado, senão como trava, ao menos como inibidor das
mudanças, tornando-as, se possível, controláveis.
Malograda a tentativa da oposição política, pensada principalmente no retorno
do PSDB ao poder, cujo desempenho no governo marcou-se pelas privatizações,
juros altos, tomadas de empréstimos à banca estrangeira, arrocho salarial e
demais quejandos, que fizeram a festa do ideário neoliberal e enriqueceram os
seus principais mentores, a grande mídia – porta-voz dos descontentes – vem
buscando formas várias de se opor ao processo. Eis então que surge a grande
oportunidade do julgamento do “mensalão”.
Elevado à condição de maior julgamento da Corte, o caso vem sendo tratado com
ares de grande espetáculo, com cobertura digna dos eventos mais noticiosos,
como Copa do Mundo, o Carnaval etc. Direcionando inédita importância a um
julgamento, encontra-se nas páginas dos jornais, nas matérias televisivas.
desde o resumo do assunto – sempre capenga no tocante ao conteúdo jurídico -,
até detalhes como a biografia dos Ministros julgadores, a disposição das
cadeiras na sala de sessão, montagens com as caras dos acusados no estilo
“procura-se”, comentaristas políticos interpretando os códigos e regimentos. E
tudo isso para demonstrar, sem o menor constrangimento, o quanto importa a
condenação de todos para o bem da moralidade política.
Temos, assim, o Supremo Tribunal enredado na estratégia de barrar um processo
político proposto por um partido. Basta ver que o sistema denunciado é velho
conhecido das agremiações partidárias e já fora utilizado antes pelo próprio
PSDB, no chamado “mensalão mineiro”, processo precedente do atual na pauta do
STF, inexplicavelmente ainda pendente de apreciação. Fosse a intenção da Corte
dar uma lição de ética e moralidade no plano da política nacional, começaria
por afastar toda e qualquer injunção vinculativa ao PT ou a qualquer outro
partido. Seguiria a trilha de julgar um sistema nefando de financiamento de campanhas
eleitorais, pressuposto de negócios e favorecimentos dos e para os envolvidos.
Deveria enfrentar o tema em sua forma ampla e histórica, procedendo aos
trâmites judiciais necessários para a validação do processo, juntando autos por
dependência, aprofundando a instrução, colhendo provas irrefutáveis. Mesmo que
demorasse um pouco mais, a nação seria brindada com um processo sério,
imparcial, justo. Mas, em lugar disso, surgiu um processo precário em suas
provas, inédito em suas teses judicantes, disposto em sessões organizadas como
jamais ocorrera antes, coincidente de forma injustificada com um processo
eleitoral.
Não sem razão os advogados criminalistas do país se estarreceram com a
reviravolta repentina do Tribunal em relação à sua jurisprudência. Enxergam
nisso um claro retrocesso nos julgados que serviam de paradigma para o
posicionamento da Corte em casos tais, levado a efeito apenas com o fito de
homologar a condenação previamente imposta aos réus. Assim está sendo
interpretada a predominância da tese do “domínio do fato”, autorizando, como
vem ocorrendo, condenações baseadas no que o réu é e não no que ele fez
comprovadamente nos autos.
É o fim do garantismo e do amplo direito de defesa, fazendo
tabula rasa
da máxima do processo civilizatório relativa à presunção da inocência. E muitas
são as vozes autorizadas que assim estão analisando o caso, mormente porque
aflora uma excepcionalidade jamais vista anteriormente da parte da Alta Corte.
Casos tão ou mais graves praticados antes, levados ao conhecimento do Tribunal,
a par de não causarem qualquer furor, não mereceram a sanha implacável ora
demonstrada. Um, em particular, relativo à apreciação da Lei de Anistia à luz
da Constituição Federal e do sistema mundial de Direitos Humanos, até
envergonhou a consciência jurídica mundial ao resultar na absolvição de
torturadores.
Tudo somado, resta patente a natureza política do julgamento em curso da Ação
Penal 470, ditada pela necessidade de reprimenda ao partido político que, ao
longos dos últims dez anos, perpetrou mudanças capazes de alterar a substância
da participação das classes na vida nacional. Nesse sentido, a atuação do STF
depende muito mais de seu posicionamento na superestrutura do que da concepção
íntima de seus componentes. Veja-se, a propósito, que a voz dissonante do
Revisor, no intuito de demonstrar a ausência de provas capazes de levar à
condenação dos principais acusados. Fez referência textuais a julgados da Corte
adequados ao caso, com citação nominal do Ministro Celso de Mello, sendo
ignorado solenemente. Paradoxalmente,
et por cause, o Ministro Luiz Fux
teve que lançar mão de jurisprudência da Suprema Corte Portuguesa para
justificar o seu voto. De todos, no entanto, o que mais evidenciou essa vontade
de correição da política pelo Supremo Tribunal foi o Ministro Ayres de Britto.
Sem meias palavras, sentenciou: “Com a velha, matreira e renitente inspiração
patrimonialista, um projeto de poder foi arquitetado. Não de governo, porque
projeto de governo é lícito, mas um projeto de poder que vai muito além de um
quadriênio quadruplicado (….) É continuísmo governamental. Golpe, portanto,
nesse conteúdo da democracia, que é republicanismo, que postula renovação dos
quadros dirigentes.”
E, assim, não havendo renovação da direção política do país pelo meio legítimo
do voto, o STF estará pronto para intervir. Isto é, dependendo, é claro, de
quem estiver no poder.